quarta-feira, 18 de junho de 2014

Articulando obstáculos e inventários – A relação entre corpo e consciência



   O título desse post aqui pretende mostrar o ponto que mais me chamou a atenção na apreciação de alguns itens do inventário. Cada obra, à sua maneira, aborda a relação entre corpo e consciência, mesmo que este não seja o tema principal. Trabalhar com esse ponto nos permite ainda discutir e fazer uma espécie de síntese com os conceitos dados como obstáculos. No entanto, a colaboração dos colegas será fundamental para comentarmos outras abordagens e “alargarmos” nosso entendimento e definições. Esse post é apenas um ponto de partida.
    Em Neuromancer, de William Gibson, somos apresentados a Case, um cowboy do ciberespaço. O autor define esse local como uma espécie de alucinação consensual. Isso é interessante, pois faz a ligação direta do conceito com a nossa mente. A profissão de Case é viajar pela matriz (assim estava na tradução que tive acesso, que não é muito boa), invadir sistemas e roubar dados. A consciência é que viaja pela rede, como se fosse independente da matéria. O próprio herói de Gibson afirma que “o corpo é uma prisão”. A adrenalina desses mergulhos no ciberespaço é o grande vício do nosso cowboy. À carne, resta o desprezo.    Como lembra o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, a informação é a terceira dimensão da matéria, junto com a massa e energia. O futuro do corpo, então, é ser um mero repositório, como um HD, de dados e informações da consciência? 
   A matriz de Neuromancer, imaginada ainda nos anos 80, é o que podemos chamar de rede. O autor a define como uma “brilhante esteira de lógica desdobrando-se pelo vazio sem cor”. Nesse lugar, a mente viaja sem limites. Ora, se entendemos o rizoma como método de produção de conhecimento onde se pode fugir, esconder, sabotar, confundir, cortar caminho, concluímos que já não mais estamos falando de estruturas fechadas e totalizantes. As redes que montamos na internet, ou o nosso ciberespaço, se parecem muito com o modo como é abordado o rizoma.
   Recorro agora ao romance a “Invenção de Morel”, para voltarmos ao problema do título. O que chama a atenção era a presença da questão, já em 1940. Para o narrador-personagem da obra, “perdemos a imortalidade porque a resistência à morte não evoluiu; seus aperfeiçoamentos insistem na ideia primitiva, rudimentar, de manter vivo todo o corpo. Só se deveria procurar conservar o que interessa para a consciência”. Essa ideia vai balizar toda a trajetória da personagem e sua decisão surpreendente de “matar” a carne para viver como imagem e ideia, para ficar na eternidade com uma amada improvável (aqui escolhi não dar mais spoilers para não estragar a surpresa do romance). 
  Obviamente, a capacidade real de dissociar corpo e consciência por meio do ciberespaço ainda é ficção para nós. Mas é impressionante a capacidade de antecipação dos artistas quanto às questões da ciência e do conhecimento. A meu ver, a liberdade formal de criação é o ponto essencial aqui, pois confere a arte a autonomia de tematizar a cultura. A expressão do subjetivo tem um compromisso diferente com o conhecimento científico, nosso ponto de discussão, pois a arte não tem função, um ponto de chegada e de partida. Ela se refere s domínio técnico e conteúdo, e por isso pode levar os temas da nossa vida e cultura à tensão dos limites.
  Encerro essa minijornada de indagações com o filme “Ela”, de Spike Jonze, onde somos apresentados a um romance nada convencional. Theodore, o personagem principal, se apaixona por um sistema operacional de última geração dotado de sentimento e senso de humor humanos (ou seriam sobre-humanos?). O que mais puxou minha reflexão sobre o filme foi pensar: com quem Theodore está realmente falando? O que implica se relacionar com um outro sem corpo, que é só “consciência”? No final, o que definirá nossa humanidade?


Paro por aqui, já me alonguei demais. Vamos à discussão!!!

por Victor Hugo C. Caldas

2 comentários:

  1. Oi, Victor. Seu texto demonstra uma observação diligente do inventário. Parabéns. Vou acrescentar algumas ideias, ainda que sem a mesma organização =)

    Penso que, em polos opostos, Her e A invenção de Morel falam do corpo utópico a que Foucault se refere. No conto de Casares, mesmo dizendo que só se deveria conservar a consciência, o personagem faz detalhadas descrições sobre a aparência do lugar, a organização das coisas ao redor. Texturas, cores e formas, percepções que parecem tão inerentes à vida, só fazem sentido quando há um corpo para percebê-las. Mesmo se um corpo artificial, ciborgue ou rizomático. Mas não somos só sentidos. No combo corpo-consciência, significamos os elementos sensoriais, simbolizamos, imprimimos neles - e por meio deles - a capacidade humana de abstrair. 

    Comparo esse trajeto ao desenvolvimento da escrita. Da versão pictográfica ao alfabeto atual, houve um processo de abstração do pensamento, complexificação da capacidade humana de estar no mundo por meio de signos. Mesmo o espaço já passou por isso: "VOU para o whatsapp", "ESTOU no facebook". Esse é um espaço reinventado e consensual, como você mesmo citou. Mas da mesma forma como hoje não é preciso desenhar uma casa para significar casa, penso que a ação desterritorializada do homem na rede também tende a ser mais integrada, como sugere o sociólogo Marcos Palacios em Cultura digital.br:

    "Cada vez menos é necessário se falar em ciberespaço. Na sala de aula, eu estou em contato físico com os estudantes, mas ao mesmo tempo estou usando uma tela de projeção conectada. Portanto, estamos nos apropriando de elementos que estão absolutamente incorporados àquele ambiente físico e que são coisas que estão no chamado ciberespaço" (p. 254). 

    Ele demonstra que não há estranhamento ou ruptura na passagem do espaço para o ciberespaço, ou seja, é uma transição também consensual, que só existe quando não há integração.
    Nesse percurso todo, a ficção científica tem muitas contribuições ao tornar imaginável tanto uma existência humana sem corpo quanto a aproximação artificial da complexidade humana em máquinas e sistemas. Em ambos os casos, uma libertação. Por exemplo, a utopia de que talvez nossa complexidade de conhecimentos, experiências, desejos e memórias não seja tão profundamente abalada pela morte ou debilmente pelo cansaço, por uma dor, por uma sensação inicialmente corpórea, mas que extrapola e toca a identidade dos sujeitos (o ciúme, por exemplo, não é uma grande peça que o corpo nos prega?) A utopia de que o corpóreo não nos defina.

    O corpo parece ser a última fronteira porque é uma materialidade complexa que não se pode copiar a contento e dela não se pode, nem se quer, desistir.

    É curioso pensamos o abandono do corpo num momento em que ele é tão cultuado. Enquanto a ficção científica explora essa libertação humana do corpo, o conhecimento científico se desdobra para melhorá-lo, corrigir seus defeitos funcionais, mas também aprimorá-lo no que há de mais sensorial: a aparência.

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  2. Olá Fran. Você levantou muito coisa interessante nesse comentário. Vou começar pelo final.

    Não tinha pensado nesse ponto que você falou do corpo e é realmente verdade. Parece que em pouco menos de 20 anos, se analisarmos o Neuromancer, a primazia mudou de lugar. O corpo é um prisão, mas queremos ficar nele, e melhorar cada vez mais essa prisão. É só olharmos essa proliferação das academias na nossa cidade e a popularização das cirurgias plásticas por motivos estéticos. Claro que as técnicas que surgem não são boas nem ruins em si, mas depende dos usos que fazemos delas. O envelhecimento hoje é visto até como um problema, quase uma doença, e fazemos de tudo, até arriscamos nossa saúde, para retardá-lo.

    No final, concordo com você que nosso corpo define nossa humanidade de forma muito precisa. É a nossa primeira forma de relação com mundo, de conhecermos as sensações e as texturas. Parece a resposta mais óbvia, mas nossa vivência mostra que nossa humanidade vem do cruzamento entre corpo e consciência. Caso fôssemos só matéria, seríamos como os animais. Mas nós temos consciência do fato de termos consciência. Sabemos, mesmo que intuitivamente, disso. Enfim, é um assunto muito amplo e interessante.

    Eu completaria a citação do Marcos que você trouxe com uma do Laymert, que me parece ter basicamente a mesma ideia:

    "Eu tenho uma suspeita, uma intuição de que tem dois movimentos: tem esse movimento de você ir para o mundo, para a dimensão virtual da realidade e voltar para atualização, que é o mundo, digamos, no qual se concretiza as potências desse virtual. E tem outro que é simplesmente mergulhar no virtual. Eu não tenho base nenhuma para afirmar isso cientificamente, mas eu tenho a impressão de que a fissura do ocidente é trazer das potências do virtual, concretizar a potência virtual e trazer de lá para cá."

    Acho que ao que o Marcos se refere se refere muito a esse movimento. A relação com o ciberespaço, aí realmente esse termo vai se tornando sem sentido, é de intercâmbio e apropriação.

    Victor Hugo



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